Declaração polémica de Pedro Pinto do Chega sobre polícia reacende debate em Portugal sobre liberdade de expressão e incitamento ao ódio. Entre 2020 e 2023, de 792 inquéritos abertos pelo Ministério Público sobre crimes de ódio, apenas 14 resultaram em acusações
“Se a polícia atirasse mais a matar…” – com estas palavras incendiárias, Pedro Pinto, do partido Chega, acendeu um rastilho de pólvora no já volátil cenário político português. Esta declaração não só chocou uma parte da opinião pública, mas também reacendeu um intenso debate sobre os limites da liberdade de expressão numa democracia moderna.
A controvérsia sublinha a complexidade de estabelecer fronteiras claras entre o direito fundamental à livre expressão e o crime de incitamento ao ódio.
O caso levanta questões delicadas sobre onde traçar a linha entre opiniões controversas e discurso criminoso. Afinal, numa sociedade verdadeiramente livre, devemos defender o direito de expressão mesmo daqueles com quem discordamos veementemente. No entanto, quando o discurso se aproxima perigosamente da apologia da violência, a sociedade enfrenta o desafio de equilibrar liberdades individuais com a segurança coletiva.
O Dilema da Liberdade de Expressão
Este caso levanta uma questão fundamental: onde termina a liberdade de expressão e começa o incitamento ao ódio?
O artigo 240º do Código Penal português procura estabelecer essa fronteira, definindo como crime o incitamento à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por características específicas.
Esta definição legal visa equilibrar a proteção da liberdade de expressão com a prevenção de discursos que possam promover violência ou discriminação.
Contudo, a interpretação e aplicação desta lei em casos concretos frequentemente geram debates acesos na sociedade e no sistema jurídico.
Um caso concreto: a justiça em ação
Uma decisão judicial recente envolvendo dois arguidos oferece uma ilustração concreta dos desafios enfrentados pelo sistema judicial ao lidar com casos de alegado discurso de ódio.
Os arguidos foram acusados de um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência por comentários publicados na rede social Twitter.
As publicações em questão incluíam comentários como “E prostituição forçada das gajas do Bloco” e “A X terá tratamento VIP”, dirigidos a mulheres militantes de partidos políticos de esquerda. O tribunal considerou que estas declarações tinham o intuito de ofender não apenas por divergências políticas, mas sobretudo pelo facto de as visadas serem mulheres.
Este caso destaca o papel amplificador das redes sociais no discurso público e a complexidade de provar a autoria e a intenção em casos de discurso online. O tribunal baseou-se em evidências digitais para estabelecer a ligação entre os arguidos e as contas de Twitter em questão.
A realidade dos números: a lei na prática
Apesar da aparente clareza da lei, a sua aplicação é “surpreendentemente rara”. Entre 2020 e 2023, de 792 inquéritos abertos pelo Ministério Público relacionados com crimes de ódio, apenas 14 resultaram em acusações.
Este dado alarmante levanta uma questão essencial: Será a lei adequada para enfrentar a realidade atual do discurso de ódio?
No entanto, um caso recente demonstra que a lei pode ser aplicada mesmo dentro das forças de segurança. Em setembro de 2024, seis polícias foram condenados disciplinarmente por incitamento ao ódio após publicarem comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos nas redes sociais. As penas variaram entre a repreensão escrita agravada e a suspensão do exercício de funções por 120 dias.
Este caso resultou de uma investigação jornalística que identificou 591 perfis problemáticos nas forças de segurança, levando a processos disciplinares contra 13 elementos.
A amplificação digital do ódio
As redes sociais transformaram-se num megafone para ideias extremistas, criando câmaras de eco que amplificam e normalizam o discurso de ódio.
Este novo panorama digital exige uma reavaliação urgente de como a sociedade lida com a liberdade de expressão no mundo online.
Construindo Pontes num Mar de Divisão
A célebre frase atribuída a Evelyn Beatrice Hall, “Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer“, enfrenta hoje um desafio sem precedentes num mundo cada vez mais polarizado e digitalmente conectado.
Esta máxima, outrora considerada um baluarte incontestável da liberdade de expressão, exige agora uma reflexão mais profunda.
Num contexto onde as palavras podem ter repercussões imediatas e de longo alcance, ampliadas pelo megafone das redes sociais, a sociedade encontra-se perante um dilema complexo: como preservar o espírito desta nobre declaração sem comprometer os alicerces da democracia e a segurança coletiva?
O desafio reside em equilibrar o direito fundamental à livre expressão com a responsabilidade de proteger o tecido social contra discursos que possam incitar à violência ou minar os próprios valores democráticos que procuramos defender.
Este equilíbrio delicado força-nos a questionar: até que ponto podemos aplicar este princípio numa era em que as palavras têm o poder de desencadear eventos como a invasão do Capitólio nos EUA em 6 de janeiro de 2021? Como podemos salvaguardar a essência da liberdade de expressão, garantindo simultaneamente que esta não se torne uma ferramenta para subverter a democracia ou pôr em risco a segurança pública?
O fosso entre a elite e o cidadão comum
Um aspeto fundamental neste debate é o crescente fosso entre uma certa elite política e mediática e o cidadão comum.
Esta desconexão tornou-se particularmente evidente em eventos políticos recentes, como as eleições em Portugal e nos Estados Unidos, onde as previsões e preferências da “elite” foram frequentemente contrariadas pelos resultados eleitorais.
Este fenómeno levanta questões importantes sobre a representatividade e a compreensão das preocupações reais da população. Muitas vezes, posições que são apresentadas como moralmente superiores ou “progressistas” por certos grupos denominados “influentes” podem estar desalinhadas com as perspetivas e necessidades de uma parte significativa da sociedade.
É vital reconhecer que a condenação de certas atitudes ou a promoção de outras como “normais” e defensáveis por uma elite aparentemente desligada da realidade quotidiana pode, na verdade, alimentar ressentimentos e polarização. Isto foi claramente demonstrado nas eleições americanas, onde uma narrativa dominante nos meios de comunicação e em certos círculos políticos foi rejeitada por uma parte substancial do eleitorado.
Este cenário alerta-nos para a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e compreensiva no debate público.
É essencial que as vozes de todos os segmentos da sociedade sejam ouvidas e consideradas, evitando a armadilha de uma “superioridade moral” que pode, inadvertidamente, silenciar ou alienar grandes partes da população. A resposta a estas questões exige um debate contínuo e uma reavaliação constante dos nossos valores sociais.
Temos que reconhecer que a defesa da liberdade de expressão deve ser acompanhada por uma consciência das suas potenciais consequências no mundo contemporâneo, onde a linha entre discurso controverso e incitamento ao ódio se torna cada vez mais ténue.
Ao mesmo tempo, é fundamental manter um diálogo aberto e respeitoso entre os diferentes setores da sociedade, reconhecendo que a diversidade de opiniões é uma força, não uma fraqueza, numa democracia saudável.
Só através de um debate genuinamente inclusivo e de uma compreensão mútua poderemos navegar os desafios complexos que a liberdade de expressão nos apresenta no século XXI.
Jornal Expresso: https://expresso.pt/opiniao/2024-11-07-se-a-policia-atirasse-mais-a-matar-liberdade-de-expressao-ou-crime–36702c2c