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Além dos títulos que nos chocam — “Caloiros humilhados em Tomar”, “Criança violada em Viseu” — existe uma verdade incómoda. Não são casos isolados. São o mesmo padrão de abuso, normalizado, silenciado, impune. A praxe que humilha é o laboratório onde florescem violências mais profundas. E nós, todos, somos cúmplices deste silêncio que nos envenena

Rastejam. Não é metáfora, é literal: os caloiros do Instituto Politécnico de Tomar percorrem a terra, mãos atrás das costas, humilhados à luz do dia. A praxe, dizem, é tradição, integração, espírito académico. Uma mentira ancestral, com roupa nova e cheiros que nenhum comunicado institucional consegue disfarçar. E quando o vídeo chega à administração, finalmente um estudante é suspenso. O país olha, comenta, passa ao próximo escândalo.

Viseu. Numa escola, uma criança de 14 anos é violada. O crime não termina aí — é filmado, partilhado entre pares como se fosse entretenimento. As imagens circulam livremente, convertendo a vítima em objeto público enquanto permanece invisível.

É fácil virar a cara, mudar de canal, relativizar. Diz-se “problemas de juventude”, “casos isolados”. Os pais preferem silêncio. Reitores e diretores viram os vídeos de Tomar e Viseu.

Quantos denunciaram?

Quantos foram responsabilizados?

Os diretores respondem com despachos que ninguém cumpre. O Ministério da Educação empurra para comissões de investigação cujos relatórios dormem em gavetas. O Estado promete novas ações de sensibilização. Mas ninguém sente o cheiro — podre — de consentimento social.

O que liga estas duas notícias?

O fio subterrâneo do abuso instalado, a sua trivialização festiva ou grotesca, a indiferença pública.

A praxe humilhante é o terreno fértil onde florescem abusos mais profundos.

Hoje ajoelha-se um adolescente para entreter a plateia.
Amanhã, a plateia filma uma violação para partilhar entre pares, rindo-se entre eles, baixando o tom quando entra um adulto na sala.

O ritual da violência muda de cenário e intensidade, mas carrega sempre o mesmo silêncio cúmplice: o dos colegas, dos educadores, dos pais, dos dirigentes. E, sim, o silêncio dos que juram proteger, do sistema de justiça à universidade, da família ao Estado.

São jovens — os mesmos que amanhã serão adultos, que vão decidir o rumo do país, ocupar cargos, educar filhos, criar leis, definir o que é aceitável ou intolerável.

São o futuro da nossa sociedade, herdeiros de tudo o que somos e testemunhas daquilo que, hoje, permitimos.

Aceitar que rastejem, que sejam humilhados, violentados e silenciados é trair Portugal amanhã.

Permitir que cresçam envoltos na banalização do crime é recusar-lhes a oportunidade de se tornarem cidadãos inteiros, pessoas com ética e coragem.

Não se trata de retórica fácil ou slogans. Escrevo porque o silêncio nos torna cúmplices.

Crescemos todos a ouvir que é “a vida”, “uma fase”, que caloiros servem para “aprender a respeitar”, que raparigas devem saber proteger-se, que a denúncia é mais vergonhosa do que o abuso sofrido.

Mentira. É nesta mentira que recusamos a nossa humanidade. E essa mentira enraizou-se fundo.

Vejo o padrão. Pais aterrorizados, agressores impunes, professores silenciados, juízes hesitantes. Em Portugal, segundo relatório parlamentar, nunca até hoje ninguém foi condenado por atos de violência em contexto de praxe. A impunidade é a mensagem mais clara que enviamos aos jovens: aqui, a lei não se aplica.

O medo, tecnologias novas à mistura, só multiplica feridas. E se os culpados são sempre os outros, nunca seremos responsáveis por mudar nada.

Mas não aceito que a praxe continue a ser o laboratório de violência consentida para o que se seguirá depois.

Recuso que a escola, espaço de construção e defesa, se converta em matadouro de inocência e decência.

E não aceito, sobretudo, que o Direito — a nossa profissão, a nossa missão — se limite a registar queixas, instruir processos, assinar comunicados insonsos onde se lembra que “tudo está a ser investigado”.

Que fique escrito: cada vez que um estudante é forçado a rastejar, cada vez que uma adolescente é violentada e as imagens circulam livremente, a responsabilidade é nossa.

Do lugar de humilhação onde fomos postos, só se sai com a cabeça erguida quando todos nos recusarmos a baixar a voz, a relativizar a crueldade, a fingir que a vergonha é apenas individual.

É tempo de agir hoje — porque quem cala diante da primeira humilhação consente e facilita a próxima violência.

O Governo, a administração universitária, o sistema de justiça têm aqui responsabilidade. E cada um de nós, cidadão a cidadão, também.

Há países que não toleramos criticar por “atrasos” — como França, que desde 1998 criminaliza o “bizutage” com penas até seis meses de prisão — que tratam a praxe violenta como crime. Portugal oferece impunidade enquanto regista queixas. Isso não é justiça. Isso é conivência.

Não há amanhã aceitável se não rompermos hoje este pacto de silêncio cúmplice que nos envergonha a todos.

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