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Laços de sangue ou laços de afecto? Um dilema judicial e humano

Imagine perder o direito de cuidar de quem mais ama. Uma filha enfrenta há 12 anos um sistema judicial que ignorou a vontade da sua mãe com Alzheimer. Este caso chocante expõe o dilema entre laços de sangue e afecto, desafiando nossa compreensão sobre família, autonomia e justiça. Este é o tema abordado no “Além dos Títulos” desta semana

Imagine acordar um dia e descobrir que não pode mais tomar decisões sobre a vida da pessoa que mais ama no mundo.

Pior ainda, imagine que essa decisão foi tomada por um tribunal, ignorando a vontade expressa dessa pessoa quando ainda estava lúcida.

Este cenário kafkiano tornou-se realidade para uma filha, protagonista de uma batalha judicial de 12 anos que demonstrou como, por vezes, o sistema judicial português ignora a realidade humana que pretende regular.

O processo

Em 2012, uma mãe, ainda em pleno domínio das suas faculdades mentais, fez uma escolha clara: a sua filha mais nova seria responsável pelas suas finanças e saúde.

Uma decisão sensata, considerando o vínculo afetivo entre ambas.

No entanto, quando a doença de Alzheimer avançou, o tribunal português decidiu ignorar essa escolha, nomeando o filho mais velho como tutor.

Esta decisão não apenas desrespeitou a autonomia da mãe, mas também abriu uma caixa de Pandora sobre os critérios utilizados em casos de interdição.

Afinal, quem deve decidir sobre o destino de uma pessoa incapacitada?

A burocracia fria dos tribunais ou os laços de afecto construídos ao longo de uma vida?

O novo paradigma da capacidade civil

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU desafia o paradigma tradicional de avaliação da capacidade mental.

Este novo entendimento exige que respeitemos a “vontade e preferências” do indivíduo, mesmo em casos de incapacidade.

Consideremos três cenários que ilustram a complexidade desta questão:

  • Um promissor atleta de 20 anos sofre um traumatismo craniano grave durante uma competição olímpica, ficando em estado vegetativo.
  • Uma executiva de 45 anos recebe o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica (ELA), enfrentando a perda progressiva do controle motor e, eventualmente, da capacidade de comunicação.
  • Um professor aposentado de 75 anos desenvolve demência vascular após uma série de acidentes vasculares cerebrais isquémicos, comprometendo gradualmente suas funções cognitivas.

Estes casos levantam uma questão essencial: quem deve tomar as decisões vitais em nome destas pessoas?

Deve ser o indivíduo emocionalmente mais próximo, que possivelmente compreende melhor os desejos e valores dessa pessoa?

Ou o parente biologicamente mais próximo?

A resposta não é simples e requer uma análise cuidadosa de cada situação, considerando factores como a vontade previamente expressa pelo indivíduo, a natureza das relações familiares e afectivas, bem como o melhor interesse da pessoa incapacitada.

Laços de sangue vs. laços de afeto

O caso levanta uma questão fundamental: devem os laços de sangue prevalecer automaticamente sobre os laços de afeto?

Esta problemática ganha contornos ainda mais complexos quando analisamos situações concretas, como o recente caso mediático envolvendo um famoso cantor português.

Neste episódio, familiares que não foram contemplados no testamento vieram a público questionar a validade do documento, lançando dúvidas sobre a verdadeira vontade do falecido.

A realidade é que esta situação está longe de ser um caso isolado.

Muitos de nós conhecemos exemplos de amizades tão próximas e significativas que se assemelham mais a relações familiares do que alguns laços de sangue.

Estas “famílias escolhidas” muitas vezes desempenham um papel mais relevante na vida de uma pessoa do que parentes distantes.

Perante esta realidade social, surge uma questão crucial para o sistema jurídico: deve a lei reconhecer e valorizar estas relações afectivas ou manter-se rigidamente vinculada aos laços biológicos?

A Lei 49/2018: um passo na direção certa?

A Lei 49/2018, que entrou em vigor em 10 de fevereiro de 2019, representa uma mudança paradigmática na proteção jurídica de adultos em situação de vulnerabilidade.

O novo regime privilegia a autonomia e a autodeterminação do beneficiário, permitindo que pessoas em situação de incapacidade participem ativamente na escolha do seu acompanhante e na definição das medidas de apoio.

As medidas de acompanhamento são adaptadas às necessidades específicas de cada indivíduo. Por exemplo, uma pessoa com Parkinson em estágio inicial pode designar uma pessoa de confiança para auxiliar apenas em decisões financeiras complexas, mantendo a sua autonomia nas outras áreas da sua vida.

O maior acompanhado mantém, em princípio, a sua capacidade de exercício. Imagine um idoso com início de demência que ainda pode decidir sobre as suas atividades diárias e hobbies, necessitando de apoio, por exemplo, apenas para as questões médicas mais complexas.

Reforço do respeito pela vontade do beneficiário, permitindo que pessoas com doenças progressivas tomem decisões antecipadas sobre a gestão dos seus bens.

Uma pessoa com esclerose múltipla pode escolher antecipadamente quem administrará seus bens, garantindo que a sua vontade seja respeitada mesmo com o avanço da doença. Isso poderia incluir a nomeação de um amigo próximo em vez de um familiar distante.

Um paciente recentemente diagnosticado com Alzheimer pode decidir sobre os seus cuidados futuros enquanto ainda está lúcido, incluindo preferências sobre tratamentos médicos e local de residência.

Um empresário com diagnóstico de uma doença degenerativa pode estabelecer diretrizes claras sobre como deseja que a sua empresa seja gerida no futuro, designando pessoas de confiança para as diversas áreas da empresa.

As medidas de acompanhamento são revistas, no mínimo, a cada cinco anos. Isso permite que as medidas sejam ajustadas de acordo com a evolução da condição do beneficiário. Por exemplo, uma pessoa que se recupera de um AVC pode ter as suas medidas de apoio gradualmente reduzidas à medida que recupera as suas capacidades.

O sistema judicial português deve abraçar plenamente o espírito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e garantir que a voz de cada pessoa seja ouvida, mesmo quando silenciada pela incapacidade.

Só assim poderemos construir uma sociedade onde os laços de afecto e a vontade individual tenham o mesmo peso que os laços de sangue nas decisões que afetam as vidas das pessoas mais vulneráveis.

Pretendemos um sistema que trate as pessoas como seres humanos complexos, com histórias, afectos e vontades que merecem ser respeitados até ao fim.

É hora de reconhecermos que a família vai além do sangue e que a justiça deve ser tão flexível quanto a própria vida.

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